O Poder do Regulador

Os eurocéticos recorrem regularmente ao exemplo da norma europeia dos tampos de sanita para demonstrar o desperdício de recursos dos eurocratas de Bruxelas. Normalmente argumentam que é uma perda de tempo regular o que o Mercado regulará. Esquecem – ou omitem – que os Estados Unidos também têm a sua norma para os tampos de sanita (UPC – Uniform Plumbing Code) que é diferente da europeia e provavelmente também será da brasileira, chinesa ou japonesa.

Com efeito, a regulação e as taxas aduaneiras foram, desde sempre, formas que os governos dos diversos países encontraram para proteger os seus produtores, penalizando – ou mesmo impedindo – os concorrentes estrangeiros de aceder aos mercados nacionais.

Durante muito tempo, essas medidas fiscais e administrativas criaram ‘bolhas’ de produção e consumo nos vários Estados europeus, protegendo os fabricantes nacionais e condicionando os preços. Mas a pressão dos grandes mercados de consumidores, como os Estados Unidos e Japão, levou os europeus a iniciarem um processo de convergência das normas regulatórias comerciais e de supressão de barreiras alfandegárias, com o objetivo de criar um Mercado Único europeu, capaz de salvaguardar os interesses dos produtores europeus e conquistar para a Europa um lugar no pódio dos influenciadores globais.

Na realidade, a regulação limita quem acede ao Mercado, e quanto maior for esse mercado, maior é também o poder do regulador. Assim se explicam as multas astronómicas que os reguladores norte-americanos ou europeus aplicam a grandes empresas e bancos. É também por causa da dimensão do mercado que essas empresas acatam as decisões e penalizações dos reguladores, para não perderem quota de mercado e consequentemente, lucro.

Se um Estado não tiver regulação, acaba por se lhe impor a regulação de outro Estado. Mas se o mercado de consumidores de um Estado for demasiado pequeno, a sua regulação não terá força para se impor e acabará derrotado pelo Mercado. Essa foi razão que empurrou os países europeus para uma regulação acima dos Estados, ao nível da União Europeia.

O que os políticos da União Europeia têm procurado fazer nas últimas décadas foi uniformizar a diversidade de normas que existiam em cada um dos países membros da UE. É essa diversidade normativa que fez, por exemplo, que fossem diferentes as tomadas e fichas elétricas nas habitações e eletrodomésticos europeus.

nA ‘Ameaça Chinesa’nSe é verdade que o Mercado pode ‘regular o que não estiver regulado’, também é certo que a regulação serve precisamente para evitar que outros imponham as suas leis dentro de um Estado, e sobretudo para proteger a produção local, e essa preocupação tornou-se mais evidente à medida que as consequências da globalização começam a penalizar os países mais desenvolvidos.

Desde a segunda guerra mundial que os EUA, com 300 milhões de consumidores, eram a principal potência económica, enquanto o Japão com 125 milhões ocupava o segundo lugar das potências consumidoras. Com uma Europa dividida, a Alemanha ocupava o terceiro lugar na ordem do consumo com 80 milhões de pessoas, enquanto a França, Reino Unido e Itália surgiam com uma população de 60 a 67 milhões de habitantes com forte poder económico.

Com o Tratado da União Europeia, a Europa passou a ser a primeira potência com 500 milhões de consumidores, e a ordem económica vigente começou a ser ameaçada. Mas isto não será nada quando os 1400 milhões de chineses ascenderem ao patamar de grandes consumidores, ou – um pouco mais tarde – o mesmo acontecer aos 1200 milhões de indianos.

A ascensão económica da China, transformando o país no maior Mercado do mundo, fará também de Pequim o principal centro regulador e as normas chinesas passarão a prevalecer para todos os produtores que queiram competir no mercado chinês. Por muito grandes que sejam, os mercados europeu e norte-americano, isolados, serão sempre demasiado pequenos para impor algo aos chineses.

A alternativa a esta ‘ameaça chinesa’ tem sido – tal como aconteceu na Europa com o Tratado da União Europeia – fazer blocos económicos supranacionais, com competências muito para lá dos simples acordos bilaterais que atualmente existem entre os Estados. NAFTA, Mercosul, ASEAN, são alguns exemplos de um primeiro nível de acordos comerciais entre países. Os desafios, no entanto, têm pressionado as maiores potências económicas a fazer alianças a uma escala ainda maior.

Os tratados de livre-comércio ganharam recentemente uma dimensão que ultrapassa os acordos regionais entre Estados vizinhos, para ganhar uma dimensão de grandes blocos económicos mundiais. É o caso do CETA, recentemente aprovado entre o Canadá e a União Europeia; o TPP aprovado entre os Estados Unidos e os países ao redor do Pacífico; ou o TTIP, ainda em negociação, entre a UE e os Estados Unidos. Todos têm um objetivo: ganhar ‘massa crítica’ para enfrentar a ‘ameaça chinesa’.

n Da Era da Globalização à Era da CartelizaçãonAs barreiras comerciais são consideradas proteções que servem apenas interesses específicos dos países que as promovem, mas impedem os consumidores de acederem livremente a produtos de melhor qualidade e / ou preços mais baixos. O fim das barreiras comerciais fez parte do processo de globalização que permitiu às empresas deslocalizarem a sua produção para países com mão-de-obra mais barata, e aceder a novos mercados para a venda desses produtos.

Este movimento beneficiou, em primeiro lugar, as empresas tecnologicamente mais avançadas – que eram dos países mais desenvolvidos – mas, ao exportar tecnologia e novos métodos de produção para países em desenvolvimento, permitiram que estes desenvolvessem por sua vez produtos competitivos que hoje concorrem com as empresas que até agora lideravam os mercados.

Assim os tratados comerciais tornaram-se instrumentos que permitem aos governos impor barreiras não tarifárias e simultaneamente, através de um processo de harmonização internacional, ‘exportar’ as suas regulamentações, favorecendo as suas empresas. Já não vivemos a Era da Globalização, que apontava para a livre circulação de capitais e mercadorias, mas para uma nova ‘Era da Cartelização’, organizada em torno de grandes tratados económicos.

Negociar um novo tratado é cada vez mais um processo complexo. São milhares de páginas e as negociações arrastam-se por muitos anos. O Tratado CETA, entre a União Europeia e o Canadá levou oito anos a negociar, enquanto as negociações do TPP, entre os Estados Unidos e onze países do Pacífico, prolongaram-se por sete anos.

Estas negociações estão normalmente rodeadas de secretismo, porque como em qualquer tratado diplomático, implicam cedências de parte a parte, a sua transparência poderia implicar debates públicos que enfraqueceriam as posições negociais. Mas esse secretismo, a par do seu longo processo negocial, lança a suspeição sobre o conjunto do tratado, dando ideia que o comércio internacional é imposto pelos estrangeiros e prejudica os interesses nacionais.

A intenção anunciada por Donald Trump de anular o tratado entre os Estados Unidos e os países do Pacífico (TPP), e a desconfiança dos eleitores europeus relativamente aos tratados com o Canadá e com os Estados Unidos, poderá levar a uma paragem, para reflexão, entre as grandes potências económicas ocidentais. Mas isso não poderá significar um abandono, mas antes a orientação para uma simplificação dos acordos internacionais.

Do mesmo modo que os ocidentais têm procurado consolidar a sua área de influência, também os chineses têm avançado significativamente no âmbito dos acordos comerciais.

A China, que foi excluída do TPP, liderado pelos Estados Unidos, está empenhada na criação de uma Área de Livre Comércio de Ásia-Pacífico (FTAAP), com os 21 membros da APEC, organização que reúne as economias da região do Pacífico, e está a negociar a Associação Económica Integral Regional (RCEP), com 16 Estados do sudoeste asiático, incluindo a Índia.

Além disso, os chineses têm já em vigor o Acordo Comercial Ásia-Pacífico (APTA), Organização para a Cooperação de Xangai (SCO), Acordo África-China, e tratados bilaterais de livre comércio com o Peru, Chile, Costa Rica, Nova Zelândia, Singapura e Paquistão. Sinal de que, neste tipo de acordos, ninguém está a dormir.

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