Nuno Machado Lopes conhece de perto os desafios que quem se aventura no mundo dos negócios enfrenta. Ele próprio empreendedor há quase duas décadas, é atualmente diretor de marketing da Beta-i, a organização responsável pelos programas de aceleração Beta Start e Lisbon Challenge. Nos últimos dois anos, acompanhou enquanto mentor mais de 150 projetos de empreendedorismo. Da sua experiência no terreno nasceu ‘Tudo Mudou Novamente’, um retrato real e duro sobre o que implica ter um negócio e fazê-lo crescer. O Empreendedor.com marcou encontro com o autor – que considera o empreendedorismo uma ‘doença irracional’ – para uma pequena conversa sobre o seu primeiro livro, que acaba de ser editado pela Chiado Editora.
‘Silicon Valley está feito para os poucos que vencem e já conhecemos as consequências que estão a surgir: a desigualdade social, os altos níveis de desemprego. A verdade é que se fala muito de investimento e a ideia é sempre a de aumentar emprego, mas a tecnologia destrói emprego. Aumenta ordenados, mas não resolve o desemprego’.
Hoje em dia, existe um verdadeiro culto à volta de figuras como Steve Jobs ou Mark Zuckerberg. São muitos os Millennials que aspiram ter um negócio tecnológico disruptivo de alcance global…
Temos de ver quais são as implicações destas empresas altamente disruptivas, como por exemplo a Uber, entrarem no mercado, especialmente quando analisamos que a sua cultura e os seus objetivos são tudo menos nobres porque estão unicamente ao serviço dos investidores. Isto não vai ter um retorno positivo para nós enquanto sociedade. E há o perigo de um dia acordarmos e em vez de termos serviços regulamentados, que para o bem e para o mal seguem uma linha, termos uma app que decide fazer um surge pricing, aumentando 7/8 vezes o preço, e que não está preocupada com o serviço que presta aos clientes. Podemos, por exemplo, querer um táxi e não haver nenhum disponível no mercado…
‘Tudo Mudou Novamente’ vai muito para além do tema do empreendedorismo. Fala de tecnologia, desemprego, desigualdade, ansiedades, medos…
As pessoas em geral andam snorkeling (mergulho em apneia), ou seja, com os óculos e com o tubo na superfície. Se nós não lutarmos contra isso, temos um bocadinho de conhecimento de tudo, mas não aprofundamos nada. Por exemplo, as empresas querem tudo para ontem, querem menos pessoas a fazerem o dobro do trabalho, e depois os resultados são os que estão à vista.
Quando recebes um smarphone da empresa ficas todo contente. Mas a empresa não te deu um smartphone, deu-te um smartphone com email. E se receberes um email à meia noite do diretor e não responderes, cinco minutos depois este está a enviar-te uma mensagem a perguntar se não viste o email. Cabe-nos a nós controlarmos a tecnologia e não deixarmos que ela nos controle. No meu caso, eu não trabalho nem atendo telefonemas de trabalho durante o fim de semana, a não ser que haja um ‘incêndio’. Mas levou bastante tempo até chegar a este ponto. Tive de me disciplinar e de disciplinar os outros também.
‘Silicon Valley está feito para os poucos que vencem e já conhecemos as consequências que estão a surgir: a desigualdade social, os altos níveis de desemprego. A verdade é que se fala muito de investimento e a ideia é sempre a de aumentar emprego, mas a tecnologia destrói emprego. Aumenta ordenados, mas não resolve o desemprego’.
No teu livro, indicas o recrutamento como uma das áreas mais difíceis na gestão de empresas. Porquê?
Isso acontece porque as pessoas não são intelectualmente honestas. Muitas vezes, pedem um valor pelo seu trabalho mas estão apenas a pensar nas suas necessidades financeiras e não no retorno que vão dar a esse valor. Outra coisa que acontece com frequência é o chamado Princípio de Peter, o que significa que as pessoas vão sendo promovidas para cargos cujas funções não conseguem desempenhar, acabando por ser quem está hierarquicamente numa posição inferior a desempenhá-las, o que cria ineficiências. O outro erro comum é a maioria dos recrutadores apenas valorizar os hard skills (competências técnicas) e não dar importância aos soft skills (competências relacionais, etc.), quando grande parte dos despedimentos acontece devido a falhas a nível dos soft skills!
Teces também uma crítica ao facto de muitas empresas não definirem a sua cultura organizacional…
Quando se começa uma empresa existem problemas com a tesouraria, com o desenvolvimento do produto, com o recrutamento, a última coisa que se pensa é na definição da cultura. Só que todas as decisões que se tomam estão por si só a definir a cultura da organização, e se tu não a defines, ela autodefine-se. Há sempre uma cultura, a questão é quando tu tens um papel nessa definição ou quando acordas e vês que ela já se definiu e tu não tiveste controlo nesse processo.
São várias as falhas que apontas modelo de Silicon Valley…
O modelo de Silicon Valley veio alterar a definição original de startup – uma empresa que está a começar. Neste modelo, o crescimento exponencial é mais importante do que as receitas, o que interessa é ter o máximo número de subscritores numa determinada app. Isto leva obviamente a um decréscimo da qualidade do serviço. Este modelo é feito para favorecer os investidores, funcionando um pouco como o sistema que deu origem à crise do subprime em 2008: há uma grande inflação que ultrapassa o verdadeiro valor do ativo. O modelo de Silicon Valley pretende criar expetativas e um roadmap onde as coisas têm de acontecer muito rápido e em que tudo tem que ver com milestones (marcos de quilómetros) em termos de early seed, primeiro, e depois, série A, B, C. Quanto maiores forem os valores e mais cedo vierem, maior será o valor da startup. É por isso que tens na bolsa uma série de empresas tecnológicas – cujos fundos de investimento, no final do ano passado, foram obrigados a diminuir o valor que detinham nas mesmas – que não têm sequer um modelo de negócios, nem sabem como vão fazer dinheiro.
Nem todas as startups têm de seguir o modelo de Silicon Valley, contudo insistem em fazê-lo. Querem ser o próximo Mark Zuckerberg (Facebook) ou os próximos Brian Chesky, Joe Gebbia e Nathan Blecharczyk (Airbnb)…
Basta fazer esta pergunta à maioria dos empreendedores que estão no início: ‘Se tu faturares um milhão por ano e tiveres uma margem de 30%, consegues ter uma vida boa?’ As Pessoas respondem: ‘Claro que sim!’ E então eu pergunto: ‘Se assim é, porque é que estás a programar uma expansão tal de mercado com previsões na ordem dos 10 mil milhões dos quais tu vais ficar com 1%?’
Uma vez fui ouvir várias startups a fazerem pitches e houve uma que eu adorei. Era uma empresa que chegou com um programa sensato, um modelo de negócio forte, números interessantes, na qual, no meu ponto de vista, valeria a pena investir. Mas a maior parte do júri achou que a mesma não tinha interesse porque os valores que apresentara eram baixos. Esta startup teve a coragem de dizer que o seu objetivo não era a expansão global, que o que pretendia era implementar-se em Portugal. A verdade é que uma empresa em Portugal pode fazer muito dinheiro. Não precisas de ir para os Estados Unidos ou de atacar o mercado europeu para fazeres dinheiro.
Há muitos empreendedores que falham porque seguem o modelo de Silicon Valley. São demasiado ambiciosos?
Não é uma questão de serem ambiciosos, eles estão a seguir as regras dos aceleradores, dos mentores…
Como é que vês o crescimento do ecossistema de startups em Lisboa?
Eu acho que o ecossistema está no início, por isso temos ainda a possibilidade de moldá-lo. O facto do Web Summit vir para Portugal é muito positivo, mas devemos parar de falar sobre isso porque apesar de se tratar de um grande evento não nos define enquanto ecossistema. Contudo, vai trazer para Lisboa investimento e startups, o que é muito importante. A nossa cidade é fantástica!: oferece talento, segurança, que é um enorme valor nos dias que correm, quase toda a gente fala inglês… Penso que seria muito interessante se todos os players do ecossistema estivessem juntos no mesmo local físico. Pegar numa área degradada, trabalhar a respetiva comunidade, e transformar o local numa minicidade vibrante de tecnologia, inovação, cultura, tudo integrado com os serviços a que estamos habituados, como o comércio, por exemplo.
Por outro lado, também me agrada que comece a existir no continente europeu alguma regulamentação relativamente aos dados, ao contrário dos americanos que criticam a Europa por isso. Desacelerarmos um pouco, pensarmos e protegermo-nos é óptimo no sentido de não obrigarmos as pessoas a abdicarem da sua privacidade. É bom que não tenhamos de fornecer tantos dados para utilizarmos um determinado serviço.
Outro aspecto sobre o qual o teu livro incide é a questão da inteligência emocional e a sua implicação na gestão de um negócio…
Quando tu crias uma startup o teu maior desafio não vai ser o desenvolvimento do produto, mas sim a relação com a equipa e a forma como vais lidar com os bons e maus momentos. Para que isso corra bem, necessitas de autorreflexão, confiança para olhares para dentro. No início é assustador porque começas a olhar para as tuas fraquezas e sentes-te inferior às outras pessoas. Com o tempo, percebes que não és assim tão diferente dos outros e começas a sentir-te bem quando alguém te aponta algo que te faz refletir. Todas as decisões que tomas no teu dia a dia estão muito condicionadas com a forma como tu te sentes.
É preciso coragem e honestidade intelectual para fazeres uma ‘crítica’ à forma como funciona o ecossistema no qual está inserido…
Essa foi a minha maior preocupação… se as pessoas me iriam achar hipócrita ou se iam perceber que escrevi o livro porque, apesar de adorar trabalhar neste ecossistema, acho que podemos ser muito melhores. Podemos mudar coisas tão simples como esta: estares a ajudar um startuper a preparar um pitch e ter de lhe dizer que, embora seja impossível prever o tamanho do mercado, a sua percentagem no mesmo, e as receitas que vai obter, tem de apresentar o slide correspondente aos valores de mercado porque o júri vai perguntar pelo mesmo. A verdade é que impossível saberes a forma como vais escalar para o mundo quando a tua ideia está ainda no início.
Quais são as principais características que um empreendedor deve ter?
Estar atento ao que está acontecer à sua volta, e isso pode passar por escrever num bloco de notas o que corre mal com os serviço e produtos que adquire no dia a dia. Os defeitos nos serviços e produtos das empresas são oportunidades de negócio. Não temos obrigatoriamente de inventar um novo produto ou serviço, podemos melhorar o que já existe.
Quais são as premissas para um negócio dar certo?
Ter paciência, estar rodeado das pessoas certas, ter um networking trabalhado – o networking não é quando tu necessitas, tens de fazê-lo antes da necessidade! -, saber se se está ou não iludido, e para esta descoberta a ajuda de um mentor é muito importante, depois é dedicação e trabalho.
Um das razões que apontas para a dificuldade em alavancar investimento em Portugal é a falta de uma verdadeira cultura de mentoring…
Dinheiro há muito, o problema é o conhecimento para saber investi-lo. Não é normal que em Portugal um angel investor leve seis meses para tomar uma decisão. No nosso país, os investidores estão constantemente à procura de mitigar riscos ao mesmo tempo que procuram um alto retorno, ora tal coisa não é compatível!
‘O empreendedorismo é uma doença. Se tu avanças não é porque achas que vais ser multimilionário, mas sim porque, embora toda a gente de tente convencer do contrário, tens uma paixão e estás totalmente focado naquilo que queres fazer. Depois é tentar fazê-lo da melhor forma e cometer o mínimo de erros.’